sábado, 3 de abril de 2010

engrenagem

J. Tinguely esboço de mecanismo

cruzo-me com imensas pessoas diariamente. conhecidas, desconhecidas, reais e imaginárias. aquelas com quem tenho conversas de horas, e as outras em que se me solta um "bom dia, obrigada". e as outras, também, com quem tenho diálogos em aparente monólogo. sem esquizofrenia, mas com a lembrança das memórias, e como as guardei em qualquer dimensão da minha vida.

cruzo-me com imensas pessoas diariamente, escrevia. e cruzo-me com as paixões baças e dormentes apagadas por marasmos insolúveis. com ausência de muitas. e com paixões das coisas simples, em poucos. tão poucos. perde-se-me a compreensão quando me detenho a pensar porque passam tantos anos sem se querer descobrir a paixão. não a que envolve dois seres humanos. essa não, desconheço. a outra. aquela paixão que nos faz mover. a que nos faz acreditar no lugar comum do não exisitir impossíveis (e não existem!). essa. quantos passam uma existência inteira sem perceber o prazer das pequenas coisas. sem compreender tão pouco o que os faz mover. o que brilha no brilho dos olhos só de pensar. sempre digo que apaixonarmo-nos por aquilo que fazemos, somos e damos nada mais é que sermos inteiros. já Pessoa o escreveu. e assim sendo, em todas as dimensões dessas expressões, invade-nos a força de sermos. quantos olhares baços e enganados não passaram já pelo meu. e dói sabê-los - a eles, os outros - assim. escolha? conformação? submissão? não sei. acredito sempre que, mesmo tarde, um dia que seja, se desvaneça essa opacidade e será, já,uma vida ganha. perdida ainda assim. mas ganha no fim.

evito sempre tornar as palavras numa associação pessoal e biográfica. evito usar a primeira pessoa desse singular. hoje vou fazê-lo, não sendo, todavia, excepção. mas, categoricamente irei fazê-lo.
já aqui escrevi um dia que desde cedo soube o que queria fazer todos os dias da minha vida. sentada num estirador artesanal com uma luz desengonçada, desenhava casas e paisagens urbanas. sempre as desenhei, em qualquer superfície plana que aguentasse os rabiscos. é uma paixão antiga. e adensou-se e sedimentou-se durante muito tempo,e o outro que virá. e que também é hoje. houve caminhos que trilhei e que sempre os soube não serem por ali. não eram, não os sentia. é isso, não os sentia em mim. andei ainda alguns anos em sinuosas descobertas. continuavam a não ser por ali. não eram, e interiorizei isso. doeu horrores quando o fiz. mas iria doer mais se continuasse em alienação e escolhesse continuar. não continuei. voltei atrás, e nisso estava um orgulho ferido à minha espera. não quis saber. voltei. e comecei. de novo. e quase do zero. escolhia, agora, materializar a paixão antiga, que apaguei à espera que desaparecesse. mas estas coisas não desaparecem. nunca. era outro caminho agora. sentia-o. e sentia-o todos os dias que durou. passado, presente e futuro. e apaixono-me, da mesma maneira que me apaixono todos os dias por Lisboa. Sempre esteve ali, com as suas mutações normais, e vou descobrindo. aqui e ali. é igual. houve poucas coisas que, até hoje, tivesse dito e não concretizado. lembro-me de uma só. há coisas que me fazem mover, e ir, e querer, e acreditar, e falar, e dizer, e ver, e conhecer, e escrever. e a arquitectura faz. sou eternamente apaixonada, em tudo. sou-o, na minha essência. e mesmo com as desilusões decorrentes deste ciclo vicioso, reinvento-me a apaixonar cada dia, por cada coisa que escolhi fazer. falo com o brilho dos olhos de cada projecto que me sai das mãos. falo com o brilho dos olhos de cada projecto que virá. falo com o brilho dos olhos da luta dentro de mim que me fez voltar atrás e percorrer um caminho sentido.este. falo que falarei sempre disto. porque me entrego inteira quando faço. e penso e ambiciono. e nisso reside em parte a felicidade.

diariamente cruzo-me com imensas pessoas, conhecidas, desconhecidas, reais e imaginárias. desejo que, numa qualquer mesa artesanal, sob a luz desengonçada, percebam a direcção e disspem a névoa que se lhes paira. no caminho insentido.

1 comentário:

Bruno Leal disse...

Pois é Ana... Os caminhos só serão caminhos quando somos nós a traçá-los. Tudo o resto são auto-estradas que nos levam sem que sequer nos apercebamos... Como podes imaginar, ler este teu post fez-me bem. :)
beijinhos